Uma nova economia é possível? Perspectivas a partir das redes sociotécnicas

Uma primeira provocação
Inicialmente, vale ressaltar a relevância da provocação feita pelo Sabelo Mhlambi sobre a quantidade de pessoas negras presentes neste evento. Isto é de suma importância, visto que o escopo do evento é, justamente, causar desconforto e questionamento, e, assim sendo, gostaria de fazer uma primeira contribuição.

É fundamental aproveitar este microfone e este espaço na USP, uma das principais universidades do país, destaque em diversos índices, inclusive no de atraso quanto ao debate racial. Há aqui uma dificuldade imensa de se estabelecer plenamente as cotas raciais, de pensar a inclusão de pretos, indígenas e periféricos, uma pauta e luta de longa data dos movimentos estudantis, sobretudo do movimento negro aqui desta universidade.

Estamos em um país onde 54% da população é negra, um país construído com sangue e suor negro e em que, possivelmente, os tataravôs de vocês, não negros, chicotearam os meus tataravôs. Particularmente, não quero discutir sociedade, tecnologia e novos caminhos com o olhar do homem branco, novamente. Então convido vocês para fazer um breve teste de pescoço ao redor aqui dessa sala. Olhe para os lados, olhe quem está sentado atrás de você. E aí eu questiono: onde estão os negros e negras neste debate para repensar a sociedade e tecnologia?

As tecnologias a partir de aspectos raciais
Dito isso, gostaria de falar um pouco da minha pesquisa sobre redes sociais a partir da economia étnica. A teoria da economia étnica (Light, 2005, 2013; Gold, 1989) propõe refletir a formação de grupos étnicos que se movimentam juntos economicamente, em relação a emprego, a suporte para desenvolvimento técnico e assim por diante, sempre entre pessoas de um mesmo grupo étnico. Aqui no Brasil, por exemplo, há comunidades de coreanos, japoneses, italianos, armênios, entre outros, que operam nessa lógica. Então, passei a observar que a movimentação de afroempreendedores era um fenômeno muito similar a essa corrente de pensamento.

Mas antes de compartilhar algumas das descobertas da pesquisa, apresento um paralelo entre a história da minha mãe, que é a inspiração deste trabalho, e a geração mais jovem de afroempreendedores. Minha mãe, bem como muitas mães negras, é baiana, com pouca escolaridade, e veio para São Paulo entre as décadas de 1970 e 1980 para tentar “ganhar a vida”. Na capital paulista, passou a trabalhar como doméstica, mas também exerceu outras atividades para complemento de renda. Nessa época possivelmente nem se falava em empreendedorismo, tão pouco em afroempreendedorismo. Então, mais recentemente, entre o início dos anos 2000, floresceram diversos movimentos e grupos de afroempreendedorismo, como a Feira Cultural Preta, o AfroBusiness, a Black Rocks Startup, o Brasil Afroempreendedor, entre outros, que buscam coletivamente discutir, estabelecer conexões e soluções para afroempreendedores.

É possível, portanto, criar algumas conexões com a história da minha mãe, porém com uma divergência geracional. Os jovens afroempreendedores são, majoritariamente, os primeiros da família a entrar na universidade e a escolher o empreendedorismo com base em suas formações técnicas como contadores, advogados, administradores, e outras profissões.

Dessa forma, a primeira observação na pesquisa é justamente a questão geracional: quem é empreendedor por necessidade, como é o caso da minha mãe, que precisava de dinheiro extra; e por oportunidade, que é o caso dessas pessoas que agora são formadas e têm a oportunidade de escolher que carreira seguir. Todavia, é importante pontuar que muitas dessas escolhas da atual geração também vêm como resultante de um sistema de trabalho que ainda é racista e excludente. Logo, ao não conseguir uma oportunidade no mercado de trabalho dito formal, o sujeito busca criar suas próprias oportunidades.

Além da diferença geracional, observamos também a relação entre uso de meios analógicos e tecnológicos de comunicação e informação. Embora o desenvolvimento e uso de tecnologia não seja novidade para pessoas negras, visto que a economia do Brasil foi construída desde o início a partir do trabalho desta população que traz de África um conhecimento técnico muito bem desenvolvido (Cunha Jr., 2010). As tecnologias negras são responsáveis pela otimização de serviços a partir de ferramentas, roupas, acessórios, tecnologias agrícolas, farmacologia, têxtil, construção civil, utilização de sabão, madeira, enfim, tudo o que foi trazido do continente africano e utilizado na construção do país.

África em 1500.

Sandália e bolsa de couro produzidas na África.

Guerreiros de Waaloo (Cunha Jr., 2010).

Dessa forma, para exercer uma reflexão contemporânea sobre o afroempreendedorismo enquanto a organização de um grupo étnico para desenvolver soluções criativas sobre economia, é de suma importância falar do racismo como mecanismo estrutural e estruturante da sociedade. Como afirma o professor Silvio de Almeida:

A busca por uma nova economia e por formas alternativas de organização é tarefa impossível sem que o racismo e outras formas de discriminação sejam compreendidas como parte essencial dos processos de exploração e de opressão de uma sociedade que se quer formar. (2017, p. 108)

A partir da Internet e da tecnologia, esses afroempreendedores formam novas comunidades, proporcionam formação técnica, experiências, ocupam importantes espaços para discutir questões que permeiam o racismo. Como Munanga (1999) explica, os vários movimentos negros contemporâneos, e isso inclui o movimento em torno do afroempreendedorismo, estão constantemente em resgate de suas culturas, do respeito e valorização de sua participação na construção da sociedade e do reforço de sua identidade. Inclusive esse é um dos aspectos da economia étnica, em todos os grupos étnicos, como observamos em ramos como culinária e seus diversos restaurantes com pratos típicos, vestimenta, símbolos, estética e beleza, entre outros.

A construção de redes e comunidades a partir da apropriação da Internet e da tecnologia é também modo de sobrevivência do ponto de vista econômico. Mas vale ressaltar que estudar negritude e tecnologia pressupõe uma sobreposição de temas, dentre os quais os aspectos políticos e sociais indissociáveis de qualquer debate que se propõe olhar amplamente.

Para citar alguns exemplos, lembremos do caso Rafael Braga, o único preso nas manifestações de 2013 no Rio de Janeiro por portar uma garrafa de produto de limpeza, e ele nem sequer participava das manifestações. Ainda, em outra ocasião, agentes do estado forjaram posse de drogas por parte de Braga em uma batida policial. O caso gerou uma grande comoção na comunidade negra, e nos seus simpatizantes, a partir das redes sociais e da Internet, o que deu origem à página no Facebook chamada “30 dias por Rafael Braga”, em que diversos profissionais, estudantes e demais pessoas engajadas se reuniram para dar visibilidade ao caso (Oliveira et al., 2017). [FIGS. 4-6]

Redes de solidariedade e indignação na Internet: o caso “Liberdade para Rafael Braga” (Oliveira et al., 2017)

Outro exemplo trata da análise do período de um ano do assassinato da vereadora Marielle Franco a partir das conversas geradas no Twitter. Observamos uma rede composta não só pela comunidade negra, mas também pelo movimento feminista, por políticos e personalidades de outros países que estabeleceram conversas, sobretudo, a partir da questão racial, uma das principais pautas de Marielle enquanto ativista e política (Lima e Oliveira, 2019). 

Marielle Presente: as redes sociais no marco de um ano da morte da vereadora carioca (Lima e Oliveira, 2019)

Já em um exemplo sobre afroempreendedorismo, temos uma análise dos quinze anos da Feira Preta, um dos mais antigos eventos sobre o tema no Brasil. Dentre os fatos observados, vemos que a Feira Preta não fala somente sobre vender e comprar produtos, ou de aspectos técnicos sobre as trocas comerciais, mas há também elementos que reforçam a identidade negra, conforme pontuado acima, como a música, a estética, discussões políticas e sociais, e, sobretudo, questões mais específicas da mulher negra (Oliveira, 2018).

O afroempreendedorismo a partir das redes sociais
Na pesquisa “Redes sociais na Internet e a economia étnica: Um estudo sobre o afroempreendedorismo no Brasil” (Oliveira, 2019), em que se realizou, entre outras metodologias, formulário online para compreensão do perfil dos afroempreendedores, viu-se que as mulheres negras são 69,5% dos respondentes. A partir desse dado podemos elaborar algumas questões: será que essas mulheres são afroempreendedoras porque escolheram ou elas ainda são as principais responsáveis pelo sustento da família? É uma manifestação do retorno ao matriarcado ou o retrato de um mercado de trabalho desigual em termos de gênero e raça?

Outros dados revelam que os entrevistados são jovens de 26 a 41 anos (58,6%) e autônomos formalizados. Em relação ao faturamento, grande parte dessas pessoas ganha até 5 mil reais e é formalizada como Microempreendedor Individual. Nesta perspectiva, questões sobre precarização do trabalho, desmanche dos direitos trabalhistas e a diferença de faturamento entre negros e não negros surgem como um alerta.

Outro dado muito interessante é que 92,2% dos respondentes participa ou tem interesse em movimentos sociais, com destaque para movimentos negros. Aqui, novamente vemos que não se trata apenas sobre trocas comerciais, mas também sobre participar e debater o contexto político e social em que as pessoas negras estão inseridas e fazer desse movimento, de sobreviver em um sistema capitalista, uma forma de também ressaltar essas problemáticas.

Já quando observamos a rede formada a partir de temas relacionados ao afroempreendedorismo em páginas do Facebook, conforme se vê na Figura 8, percebemos as estruturas e as relações no contexto digital e assim conseguimos responder questões como: quais páginas, projetos e associações se conectam mais e conversam mais entre si? Quais os temas que não estão, necessariamente, relacionados a essas trocas comerciais, mas que simbolizam um todo na construção da identidade de população negra?

Estrutura e relações do afroempreendedorismo a partir da análise de redes sociais na Internet (Oliveira, 2019).

Temos, então, uma comunidade de rappers, de comunicação própria com demarcador racial, moda, acessórios e serviços, uma comunidade específica sobre empregabilidade, outras sobre beleza e estética e de relações com o continente africano a partir das Câmaras de Comércio.

Logo, a função primordial do afroempreendedorismo, centrado em combinar trocas comerciais à construção de identidade, está bem ilustrada no diálogo entre o cantor Mano Brown e sua mãe, Dona Ana, em uma música dos Racionais MC’s: “Desde cedo a mãe da gente fala assim, ‘filho, por você ser preto, você tem que ser duas vezes melhor’. ‘Como é que a gente vai ser duas vezes melhor, se a gente tá trezentos anos atrasado?’”.

As principais características do afroempreendedorismo vão além de aspectos técnicos, também se dedicam a suprir demandas ocasionalmente desenvolvidas por problemas sociais, políticos e estruturais. Os afroempreendedores empregam emoções, identidade que demarcam sua etnicidade em seus negócios, têm indignações e acreditam na capacidade de alterar cenários a partir de suas redes afroempreendedoras. Para os afroempreendedores, empreender é construir o passado e o presente de suas histórias, dadas suas condições de vida. A prática do afroempreendedorismo também demarca as disparidades no ato de empreender entre negros e não negros, sobretudo ao que se refere ao capital social, econômico e político desses grupos.

Assim, concluímos que, para se pensar uma nova economia possível levando em conta o contexto tecnológico, é de suma importância ouvir e respeitar aqueles que resistem e inovam desde que o primeiro navio negreiro chegou a esta terra. 

REFERÊNCIAS

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ALMEIDA, Silvio L. de. O que é racismo estrutural?. São Paulo: Letramento Editora e Livraria, 2018.

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BURDICK, Anne et al. Digital Humanities. Mit Press, 2012.

CUNHA Jr., Henrique. Tecnologias africanas. Rio de Janeiro: CEAP, 2010.

DANIELS, Jessie. Race and racism in Internet studies: A review and critique. New Media & Society, v. 15, n. 5, pp. 695-719, 2013.

GOLD, S. J. Chinese-Vietnamese entrepreneurs in Southern California: An enclave with co-ethnic customers? In: Proceedings of the American Sociological Association, Anais. San Francisco, 1989.

LIGHT, Ivan. Global entrepreneurship and transnationalism. In D. Leo-Paul (org.). The Handbook of Research on Ethnic Minority Entrepreneurship: A co-evolutionary view on resource. Cheltenham: Edward Elgar, 2007.

______. The ethnic economy. In N. Smelser e R. Swedberg (org.). The Handbook of Economic Sociology. Princeton EP & Russel Sage, 2005.

LIMA, Dulcilei da Conceição; OLIVEIRA, Taís Silva. Marielle Presente!: As redes sociais no marco de um ano da morte da vereadora carioca. Anais do 8º Congresso Compolítica. Brasília, 2019.

MUNANGA, Kabengele. Negritude – Usos e sentidos. 3ª ed. 1ª reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

OLIVEIRA, Taís. Redes sociais na Internet e a economia étnica: Um estudo sobre o afroempreendedorismo no Brasil. Dissertação (Mestrado em Ciências Humanas e Sociais) – Programa de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal do ABC, 2019.

OLIVEIRA, Taís. Redes sociais na Internet, narrativas e a economia étnica: Breve estudo sobre a Feira Cultural Preta. In: SILVA, Tarcízio; BUCKSTEGGE, Jaqueline; ROGEDO, Pedro (orgs.). Estudando Cultura e Comunicação com Mídias Sociais. Brasília: Editora IBPAD, 2018.

OLIVEIRA, Taís; DOTTA, Silvia; JACINO, Ramatis. Redes de solidariedade e indignação na Internet: O caso “Liberdade para Rafael Braga”. Anais do 40º Encontro do Intercom. Curitiba, 2017