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Superando os limites da racionalidade em humanos e em máquinas racionais através da pessoalidade relacional do Ubuntu
Disseram-me que metade dos brasileiros se considera descendente de africanos. E se isso for verdade, significa que estou em casa. Mas, mostrando as mãos, quantos nesta sala se consideram descendentes de africanos? Três de cinquenta… quatro, cinco, seis. Acho que isso mostra que há um problema com esta imagem. Não é bem distribuído quem pode estar nesta sala e ter essas conversas
e discussões.
O tema que abordarei é relinguagem. O que significa fazer relinguagem? A maioria de nós nesta sala fala uma língua colonial, certo? Português, inglês, espanhol… Isso demonstra os efeitos persistentes da colonização. Que, mesmo quando falamos em descolonização, precisamos usar as línguas coloniais para fazê-lo. Como podemos escapar disso? Estamos presos a isso? Estamos presos às estruturas coloniais e, algum dia, nos libertaremos delas? É possível se libertar da supremacia branca? Isso é algo que podemos fazer nesta vida, ou em um século? Estamos presos a essas estruturas de poder?
Como exemplo de relinguagem, penso nos patois da Jamaica. O que eles fizeram com o idioma foi utilizar terminologias diferentes para substituir determinadas palavras. Se você está falando sobre
outra pessoa, se você está falando sobre comunidade, diz “eu e eu”, porque isso representa a unidade e a conexão da comunidade. Aqui está outro caminho, e não sei se é possível: podemos voltar para as línguas indígenas? Tenho pensado muito sobre isso comigo mesmo. No futuro, espero chegar a um ponto em que possa apresentar em meu próprio idioma, zulu, e publicar em minha própria língua. Portanto, se as pessoas quiserem ter acesso ao meu trabalho, terão que aprender zulu ou encontrar outras maneiras.
Sempre luto com essa pergunta: quanto estamos contribuindo para as estruturas de poder participando delas? E será que podemos não participar, e ainda assim progredir, e ainda assim fazer
mudanças? Quantos de nós conhecemos o famoso músico da Nigéria chamado Fela Kuti? Ele disse algo assim: “No caso da África, a música não pode ser apenas para diversão. A música deve ser para revolução”. Não temos o luxo de apenas desfrutar – precisamos usar isso para lutar em nossas próprias contendas. Gostaria de pegar o mesmo conceito e aplicá-lo à tecnologia. Também não pode ser simplesmente por eficiência, por otimização; a tecnologia deve ser para revolução. O que é revolução? O que significa se revoltar? E como nos revoltamos com sucesso? Se precisamos de uma revolução, devemos estar em algum tipo de luta, em algum tipo de guerra. Enquanto falamos sobre descolonizar a linguagem, descolonizar a tecnologia, descolonizar as IAs: sentimos realmente que estamos em uma luta, sentimos que estamos em uma guerra?
Nos últimos anos, você deve ter ouvido a frase “colonização de dados” se referir a como as empresas de tecnologia estão “colonizando” populações pobres no Sul Global. Algumas pessoas temem
que os palestrantes usem o termo sem entender o que ele significa. Quando se trata de colonização, penso em minha própria história pessoal. Sou da parte sul do continente africano. Para nós, a colonização aconteceu cerca de trinta anos atrás. Todos que conheço cresceram durante a colonização. Meus pais, meus tios, meus primos. O Zimbábue foi libertado dos britânicos em 1980. A África do Sul foi libertada em 1994. Carrego as lutas e o sentimento do que significa ser colonizado, porque meus avós pegaram em armas e foram à Rússia treinar para lutar contra os colonizadores no Zimbábue, na Zâmbia, na África do Sul e assim por diante. Para mim, descolonização significa algo totalmente diferente. Significa retomar. Significa revolução. Significa lutar pelo que é certo, lutar pela sua liberdade, lutar pela sua soberania. Então, se estamos falando de tecnologia e colonização: estamos realmente dispostos a lutar por nossa liberdade? Estamos realmente dispostos a lutar até o fim? Não necessariamente pegando em armas físicas, mas podemos pegar em outros tipos de armas para recuperar nossa terra e nossa soberania?
Ao fazer perguntas, também incentivo o feedback e a participação, porque é assim que nos comunicamos no contexto africano. É comunal. É colaborativo. Se você tem algo que deseja gritar, então grite de volta. Não estou aqui porque sou especialista em enviar informações a você. Você não precisa apenas receber, chegamos a um consenso. É informal, mas também cultural.
Quero continuar com o tema da revolução e o tema da luta. Se estamos olhando para a colonização, ou colonialidade, qual é a nossa luta? Gostaria de sugerir que nossa luta é uma luta para
ser humano. Por quê? Porque se traçarmos a essência da colonização, a essência dos modos de pensar, sentir e perceber o mundo, tudo remonta à questão fundamental do que significa ser humano. Quando se trata do continente africano, e também nas Américas, os povos indígenas não eram vistos como humanos. Seus modos de fazer, de viver e de adorar não eram considerados humanos. A Europa teve que vir e ensinar essas pessoas essencialmente como ser humano. O que significa ser humano na concepção ocidental? O que o filósofo euro-americano médio diria ser a diferença fundamental entre a humanidade e os animais?
[Participante da audiência] Pensar.
[Mhlambi] Sim, pensar. Alguém mais?
[Outro participante da audiência] Ter uma alma.
[Mhlambi] Ter uma alma, sim, parece Descartes. A mente e a alma. O que mais?
[Outro participante da audiência] Consciência.
[Mhlambi] Sim. Se voltarmos aos gregos antigos, descobrimos que um dos primeiros filósofos, Aristóteles, diz que o homem é um animal racional. Novamente, quando se trata de pensar, parece que a capacidade de raciocinar é o que distingue os seres humanos dos animais. Séculos depois, Descartes, o pai da filosofia moderna, diz: “Penso, logo existo”. Novamente, o tema da racionalidade se repete. Nossa capacidade de pensar é o que nos torna distintamente humanos, certo? Outros filósofos ocidentais, como Kant, falam sobre o que significa ser moderno. Kant coloca a maior ênfase na razão quando fala sobre autonomia moral. Ele diz que leis universais existem e que podemos usar nossa razão para entender essas leis universais; portanto, podemos chegar a conclusões morais que não se contradizem. Este é o imperativo categórico de Kant. Novamente, essa ideia de razão e racionalidade é bem essencial para ser humano.
Mas a racionalidade tem limites? Gosto de pensar que, sim, a racionalidade tem seus limites. Há coisas que ela não pode descrever completamente. O matemático Leibniz foi inspirado por outro matemático, Ramon Llull (sobre quem falarei daqui a pouco). Leibniz é inspirado por Aristóteles, que lançou as bases da lógica formal. Se você conhece Aristóteles, sabe que ele queria provar logicamente diferentes conceitos. Por exemplo, ele diria: o homem é um animal; Sócrates é um homem; portanto, Sócrates é um animal.
Isso faz sentido logicamente, e ele acreditava que você poderia chegar a conclusões logicamente. Leibniz tem a ideia de que podemos encontrar um tipo de álgebra, um tipo de matemática, que permite representar todos os conceitos existentes. Em seguida, você pode encontrar relações entre esses conceitos e, depois, usar uma máquina para determinar a verdade desses conceitos. Isso soa familiar? Soa como “IA”. Leibniz passou a sua vida tentando encontrar uma álgebra, uma linguagem simbólica para alcançar a verdade. Naquela época, ele era famoso por ter inventado a primeira “calculadora”, descrevendo uma máquina que permite adicionar, multiplicar, subtrair e dividir. Ele pensou que poderia fazer outra máquina para calcular a verdade.
Agora vamos voltar à inspiração de Leibniz: Ramon Llull, um lógico do século 13. Llull foi inspirado pela ideia de divinação [ou adivinhação]. Quantos de nós estão familiarizados com a divinação? É a capacidade de prever o futuro enquanto se lida com muita incerteza. Você fala com os deuses, as divindades, e tenta prever o futuro. Sei que no Brasil há definitivamente a divinação de Ifá, porque há uma grande população iorubá que foi escravizada e trazida para cá. Se você passou algum tempo na Bahia, pode ter visto um pouco disso. Gostaria de exibir um vídeo rápido para mostrar o que quero dizer com divinação. Este é o sistema de divinação de Ifá, da África Ocidental, em particulardo povo iorubá.
[Onaje Woodbine] Sabemos que você veio para consultar a divinação de Ifá. E que você está aqui para resolver um problema. Oramos a Ifá para que seu problema seja resolvido. A religião iorubá é composta por um grupo étnico da região sudoeste da Nigéria que se espalhou por toda a diáspora africana. O que faremos hoje é realmente observar grande parte da prática chamada divinação de Ifá. Desenvolvemos um aplicativo para iPhone para que uma pessoa possa ao menos simular como seria estar em um espaço ritual na religião iorubá. Ifá é a divindade da sabedoria para todos os praticantes da religião iorubá. Agora queremos que você pegue a corrente de adivinhação e ore silenciosamente. E o cliente faz uma pergunta silenciosamente e o sacerdote pega a corrente de adivinhação e chama a divindade da sabedoria, Ifá, para compartilhar uma mensagem de ajuda para o cliente.
[Folasade Woodbine] A divindade está nos dizendo que você irá longe na vida. Pode haver algumas tribulações no seu caminho, mas você encontrará alegria em seu caminho.
[Onaje Woodbine] Quando a corrente realmente cai no chão, há quatro sementes no lado direito da corrente e há quatro sementes na esquerda, e essas sementes podem pousar para cima ou para baixo. Existem 256 possibilidades de como a corrente cairia; portanto, uma vez que o sacerdote possa ler a cadeia, haverá milhares, literalmente milhares, de versículos conectados a essas 256 assinaturas. Portanto, o sacerdote usa sua memória para recordar todas as histórias dessa assinatura em particular, até que o cliente considere útil um desses versículos. Diga-nos se alguma da sabedoria que Ifá está compartilhando com você está relacionada ao seu problema.
[Mariama Alexis Akosua Camara] Minha pergunta era se eu seria bem-sucedida em meu trabalho futuro, e foi útil porque me disse que haverá alguns problemas, mas que terei sucesso no final.
[Fim do vídeo.]
Este foi um simples vídeo de como é a divinação de Ifá. Observe que antes do início da divinação, o cliente fala com o Ifá, com o objeto, e eles compartilham o que querem. O sistema de Ifá é usado
para chegar a uma conclusão, mas essa conclusão, como vocês podem ver nos últimos segundos, é uma colaboração. Não é “esta é a resposta, vá viver sua vida”. Não é uma previsão sólida. Tanto o
profissional quanto o cliente chegam juntos a uma conclusão.
Gostaria de sugerir que o aprendizado de máquina não é algo novo. É simplesmente divinação digital. Tanto o sistema de Ifá quanto os computadores estão tentando tomar uma decisão em meio a uma grande incerteza. Mas então, no caso do aprendizado de máquina, o computador parece dizer: “Aqui está, essa é a sua resposta”. Com a divinação de Ifá, não há uma certa verdade. Não há verdade racional, lógica e razoável. Todo mundo tem que trazer seu contexto para chegar a uma conclusão, para chegar a uma verdade.
Nos anos 1300, o matemático Ramon Llull foi apresentado a este tipo de sistema de divinação de Ifá. Como? Quando os mouros do oeste e do norte da África chegaram para governar partes de
Portugal e Espanha por setecentos anos, eles trouxeram consigo esse sistema de divinação. Eles ensinaram esse sistema de divinação aos matemáticos e o praticaram como uma geometria sagrada
ou uma divinação de areia sagrada. Llull estava familiarizado com esse tipo de pensamento. Llull, inspirado nesse pensamento europeu, queria criar algo mais direto e racional, algo que não tivesse esse misticismo, mas sim algo possível de provar matematicamente e logicamente. Então, criou uma máquina lógica: uma máquina que visava converter muçulmanos, que Llull considerava infiéis, ao cristianismo. Se você mostrasse essa máquina a um muçulmano e lhe fizesse perguntas, as quais ele responderia racionalmente, essa máquina tentaria convertê-lo ao cristianismo usando a lógica. Por quê? Porque se os muçulmanos são humanos, e os humanos têm razão, então você pode usar a razão para converter muçulmanos em cristãos. Llull está simplesmente adotando o conceito de divinação e aplicando racionalidade a ele.
Se avançarmos pela era do Iluminismo, vemos esse mesmo padrão em que os humanos devem supostamente escapar do medo e da superstição usando o seu intelecto. O que concluo – e há muito
mais a dizer sobre isso – é que a maneira como definimos a pessoalidade tem suas próprias implicações. Quando os primeiros cientistas da computação criaram IA usando computadores, estavam tentando fabricar máquinas que são como seres humanos. Para
eles, ser humano era ser racional e razoável, usar a razão. No entanto, os computadores não têm como entender o contexto. É por isso que hoje as máquinas estão prejudicando as pessoas, porque
elas não têm como levar em conta racismo, gênero, desigualdade e outros tipos de inequidades existentes. Os dados não interpretam a si mesmos. Os seres humanos ainda precisam interpretar
os dados. Os dados não dizem como ser moral. Não dizem o que você deve fazer. Você não pode escapar dos dilemas morais apenas olhando para os dados, os seres humanos têm que produzir um
elemento moral.
Na parte que falta da IA, encontramos uma versão diferente da pessoalidade, que, por exemplo, encontramos no contexto africano, onde a pessoa tem relacionalidade. É assim que estamos interconectados. Não consigo descobrir a verdade simplesmente sozinho. Preciso que todos nesta sala me ajudem a chegar à verdade. Se eu incluir o seu contexto, podemos chegar a uma conclusão maior, assim como no sistema de adivinhação de Ifá. Vamos reconsiderar os próprios fundamentos dessa tecnologia e tentar encontrar sistemas alternativos que nos desafiam a ser verdadeiramente humanos – a ser verdadeiramente relacionais.