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Por mais diversidade na tecnologia
Ultimamente, tenho me intitulado como uma pessoa curiosa, e a curiosidade é o que tem me levado a experimentar. Sou jornalista, pesquisadora, professora e faço um monte de outras coisas. Experimentei, recentemente, codirigir o documentário Quadro negro ao lado do Bruno F. Duarte para a FLUP – Festa Literária das Periferias. Quadro negro é um documentário sobre as histórias desta geração, da qual faço parte, de pessoas negras que foram à universidade, geralmente as primeiras pessoas das suas famílias a ingressarem no ensino superior. Eu nunca tinha trabalhado com audiovisual para além de comunicação para filmes – mas a ideia mesmo é me botar dentro dessa caixinha da curiosidade, porque acho que ela move muito.
O Olabi, que é a organização que eu codirijo com Gabi Agustini, nasce como um makerspace – não sei se todo mundo está familiarizado com esse termo, mas é, basicamente, um lugar que é equipado com essas máquinas de fabricação digital, como impressora 3D, cortadora a laser, CNC (Computer Numerical Control – Comando Numérico Computadorizado). Estávamos – e até hoje estamos – muito interessadas em entender o que é ser maker no contexto do Brasil. Porque a maioria das bibliografias sobre o assunto são do hemisfério norte, e acreditamos que o brasileiro é um maker por excelência. Sempre criando soluções para problemas reais que, muitas vezes, não são vistas como soluções ou inovações.
Nascemos como uma organização em 2014 e trabalhamos dentro de três eixos: diversidade, tecnologia e inovação social. Como somos uma organização jovem, todo ano nos repensamos e avaliamos sobre nosso foco dentro da nossa missão, que é a de pensar a democratização das tecnologias, porque é isso que irá orientar as nossas ações naquele ano. Atualmente, temos pensado dentro de quatro eixos: longevidade, porque a população do Brasil está ficando mais velha; ciência e tecnologia, pois vêm pautando muitos dos nossos gostos e escolhas; e diálogo entre diferentes áreas do saber. Mas, na verdade, ninguém entende muito bem o que fazemos no Olabi.
As pessoas sempre me perguntam “mas, Sil, o que é o Olabi?”, e falo que é uma organização social que trabalha dentro desses quatro eixos citados, mas é interessante as pessoas não entenderem muito o que fazemos porque, assim, conseguimos transitar por várias bolhas. Dessa forma, os bem high-tech acham que somos muito do movimento social para ser das tecnologias. Enquanto as pessoas do movimento social acham que somos muito da tecnologia para integrar o movimento social e, assim, vamos andando pelas margens e pelas beiras. Pelas bordas.
Gostaria de compartilhar alguns exemplos de projetos que desenvolvemos e temos desenvolvido, nesses últimos tempos, dentro desses eixos que têm orientado nossas ações. Como o “60+ Arte e tecnologia”, uma oficina presencial para pessoas acima de 60, que mistura múltiplas técnicas. Todo o nosso trabalho, as nossas metodologias, são pautadas em misturar saberes e conhecimentos.
Workshop “60+Arte e tecnologia” na Maré, Rio de Janeiro. Novembro, 2019.
Fonte: Monara Barreto / Olabi
Pensamos muito sobre como falar de tecnologia e conseguir dialogar com aqueles que não estão dentro dessas bolhas, trazendo coisas que fazem sentido para eles. Por isso criamos cursos desde 2014 que mesclam esses saberes. Desenvolvemos há alguns anos o curso “Costura high-tech”, com a ideia de misturar bordado, conhecimentos de corte e costura, com impressão 3D, eletrônica aberta, para construir tecnologias vestíveis. Desenvolvemos também o 60+, um projeto que teve sua segunda edição recentemente no Complexo de Favelas da Maré, no espaço dos nossos parceiros do data_labe.
E esse projeto acabou gerando um outro, uma plataforma lançada recentemente: Aprenda com uma avó. Partimos ideia de que todo mundo tem alguma coisa para aprender e para ensinar, então por que a gente não pode dialogar, também, com outros públicos? Temos um canal no YouTube que se chama Computação sem caô, dentro de uma ideia maior que é pensar como podemos trabalhar para a computação ser acessível a todos. O Computação sem caô pega os conceitos de ciência da computação que são, em geral, muito complexos e os transforma, trazendo o assunto para uma linguagem mais popular. Lá tem, por exemplo, uma explicação sobre como o Waze funciona, pois a ideia é dialogar com pessoas de diferentes lugares e expertises, estimulando uma aproximação do público em geral com esses conceitos que muitas vezes ficam restritos a determinados círculos.
Tudo isso o que fazemos parte muito mais de um lugar de pergunta do que de resposta. Na verdade, não temos muitas respostas para esta novidade toda que está aí, mas estamos criando ideias e caminhos para poder trazer mais gente para pensar nisso conosco. Desses quatros eixos em que temos trabalhado, o mais importante é a questão racial. E é a questão racial porque é muito complicado, no Brasil, falar de qualquer coisa sem pensar neste tema. Nosso país tem um passado muito recente de escravidão, são apenas 132 anos de “abolição”. Fala-se muito em dívida histórica, mas não é somente uma dívida histórica; é uma dívida atual, e precisamos trabalhar para romper com esta desigualdade. Importante dizer, esta não é uma questão das pessoas negras, é uma questão de toda a sociedade.
Combater o racismo é, hoje, o pilar mais forte nas nossas ações. Quando conheci uma das mais importantes e interessantes desenvolvedoras, a Maria Rita Casagrande, tive a ideia de criar um projeto para poder ver mulheres negras nessas discussões. Assim nasceu o PretaLab, em 2017 – e eu não sabia muito bem o que seria isso. A ideia inicial era reunir mulheres negras, discutir tecnologia, inovação, com elas. E por que queremos trabalhar nesse eixo com esse público específico? Porque, simplesmente, as mulheres negras representam mais de 28% da população no Brasil, e isso significa um pouco mais de 60 milhões de pessoas. E estamos acumulando os piores índices em várias áreas, como educação, saúde, emprego. Então, decidimos ir em busca de pesquisas que trouxessem a questão de gênero e raça nas tecnologias. Achamos um dado dos EUA que diz que apenas 4% das start-ups de tecnologia são comandadas por mulheres negras.
No Brasil, procurei dados que dessem conta dessa interseccionalidade e não achei pesquisas feitas por um grande centro da área, mas encontrei uma feita aqui, na Poligen (Grupo de Estudos de Gênero da Poli), em 2013, o ano em que a USP completou 120 anos, que afirma terem havido só dez mulheres negras formadas no Centro de Tecnologia da USP. Bom, olhei para tudo aquilo e me perguntei o que iria fazer. A primeira ação do PretaLab foi criar um levantamento bem informal, a partir das nossas redes institucionais e nossas redes de afeto – para mapear e entender onde essas mulheres estavam, no Brasil, e em que área da tecnologia. Porque, quando falamos em tecnologia, estamos falando de quê, afinal de contas? Já nesse primeiro mapeamento, queríamos não só mapear as engenheiras, as mulheres de TI, mas também as designers, as produtoras de conteúdo, as minas do audiovisual. Então, para nós, na tecnologia, cabem todos estes recortes. E queríamos olhar para os dados e entender o que essas mulheres estavam fazendo.
Em menos de um ano de levantamento chegamos a quase seiscentas mulheres e, como é óbvio, não chegamos a todas as mulheres – sabemos que há muitos limites – mas atingimos mais de vinte estados do Brasil, em todas as regiões, e com uma diversidade enorme de idade e área. Por exemplo: havia mulheres de 17 a 67 anos, e isso foi muito interessante. Esse levantamento deu uma orientada, também, nas nossas ações. No mesmo ano, fizemos uma série de vídeos com mulheres negras com trabalho reconhecido na área, para estimular esse campo mais subjetivo da inspiração. Afinal, sempre me perguntam a razão de haver poucas mulheres negras na área. Acho que é uma questão de falta de oportunidade – vivemos em um país muito desigual, e a questão estrutural é muito relevante. Mas tem também outro elemento, que a Didiana Prata bem ressaltou [em outro capítulo deste livro], que é a questão da imagem: não temos certo repertório imagético, então não imaginamos poder estar em determinados lugares; afinal, ali não vemos pessoas parecidas conosco. Por isso adoro esta parte mais subjetiva, da inspiração.
Dentro desses quase três anos de projeto fizemos muita coisa. Criamos metodologias, imersões, projetos que trabalhassem dados, que focassem em mulheres negras, como o Minas de dados, fruto de uma parceria com o data_labe e a Transparência Brasil, que gerou o projeto que se chama Mulheres negras decidem. Após as mulheres participarem de uma formação, elas criaram uma iniciativa para avaliar a sub-representação das mulheres negras na política institucional no Brasil. A infeliz coincidência é que no dia em que elas estavam defendendo para uma banca esse projeto, que era muito inspirado na atuação de Marielle Franco, a vereadora foi assassinada.
Minas de dados: programa imersivo para mulheres negras sobre uso de dados para iniciativas focadas no bem comum. Março, 2018.
Fonte: Safira Moreira / Olabi
Organizamos também o Mulheres negras pautando o futuro, um encontro para discutir saberes, juntar elementos diferentes. Na edição inaugural convidamos a Sônia Guimarães, a primeira professora negra de física do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA); a Jurema Werneck, que é a diretora da Anistia Internacional; e a Gabi Roza, jornalista do data_labe, para discutir um pouco sobre o que a tecnologia tem a ver com direitos humanos. Em muitos lugares que chego, quando digo que trabalho com tecnologia, as pessoas acham que é sobre robôs ou que sou programadora, mas, na verdade, minhas preocupações e pesquisas na área da tecnologia são sobre o impacto dela na sociedade. E o quanto a tecnologia pode também aumentar a desigualdade.
Mulheres negras pautando o futuro. Julho, 2018.
Fonte: Safira Moreira / Olabi
Em 2019, lançamos uma plataforma nova no site do PretaLab, o “pretalab/perfis”, que reúne perfis de mulheres negras em tecnologia. A ação é resultado da pesquisa que realizamos em 2017, sobre a presença de mulheres negras no setor, e tem três objetivos: primeiro, que possamos nos conhecer entre nós mesmas; segundo, poder trabalhar, colaborar e dar visibilidade ao trabalho das mulheres; e terceiro, fornecer uma resposta ao mercado de trabalho, que diz não encontrar mulheres negras qualificadas nesta área. Isso porque, depois que lançamos o PretaLab, muitas empresas e organizações vieram nos procurar para saber como chegar aos “talentos negros”. No entanto, não se trata apenas de chegar a eles, de ter uma pessoa negra na sua empresa, ou na sua organização, mas como é que se cria, realmente, políticas antirracistas para essas pessoas se manterem ali. Tudo o que fazemos é uma tentativa de dialogar, um pouco mais, com o mercado de tecnologia.
Fizemos uma pesquisa em parceria com a ThoughtWorks que lançamos em 2019, intitulada “Quem coda o Brasil?/Quem coda BR” , em que olhamos para as empresas, para as equipes técnicas das empresas de tecnologia a fim de entender como a diversidade é acolhida nestes lugares. Já tínhamos uma suspeita, que era não haver diversidade. Realmente não tem diversidade, nem de gênero, menos ainda de gênero e raça, porque, infelizmente, esses setores ainda estão muito concentrados em um tipo padrão de pessoa. Creio, entretanto, que isso será mudado, pois este é o mercado que mais cresce, o mais promissor no mundo, então chegará a hora em que ele precisará absorver nosso trabalho.
Por último, quero falar de uma iniciativa lançada em 2018, desenvolvida a partir da ideia de podermos criar códigos, linguagens, para cotidianos antirracistas. Assim nasceu o Códigos negros, um encontro que fizemos no Olabi, em parceria com a Plataforma Cabine e a Plataforma Gente. A proposta do Códigos negros foi de discutir a partir de três eixos: arte, comunicação e tecnologia. Foi um dia inteiro de trocas com pessoas que estão produzindo conhecimento nessas áreas, e, nesta primeira edição do Códigos negros, convidamos para a mesa “Gente”, que discutiu as linguagens de comunicação, o jornalista e pesquisador, ativista do movimento LGBT negro e YouTuber Murilo Araújo; a publicitária e estrategista em comunicação Isabel Aquino; e a jornalista e diretora de conteúdo Renata Novaes. Para a mesa “PretaLab”, convidamos a full stack developer, mãe, editora, curadora de conteúdo e consultora de negócios tecnológicos e inovação Maria Rita Casagrande, além do pesquisador e curador na Desvela, doutorando em Ciências Humanas e Sociais na Universidade Federal do ABC (UFABC) Tarcízio Silva, com a mediação por minha conta. Por último, na mesa “Cabine”, convidamos o artista visual e escritor Yhuri Cruz; a tradutora, poeta, crítica literária e editora Jess Oliveira; e o criador da Cabine, plataforma de arte negra LGBT, e mestrando em Comunicação e Cultura na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Bruno F. Duarte.
Códigos negros: linguagem para cotidianos antirracistas. Novembro, 2019
Fonte: Paulo Oliveira / Olabi
Códigos negros é uma experimentação que tenta desvendar quais códigos são esses e como podemos levá-los a espaços que transbordem os das bolhas comuns, afinal, esta é uma das minhas maiores preocupações: como falar disso para outras pessoas?
Costumo dizer que aprecio a metodologia da igreja evangélica, que fala em “levar a palavra”. Como levamos a nossa palavra? E, olhando para o mundo, e para o Brasil, especialmente hoje, penso que um dos grandes entraves sociais que temos é a falta de diálogo. Parecemos estar em um mundo que, de um lado, tem um muro – ou vários muros –; e então, como se cria uma ponte de diálogo com as pessoas? Não é só com os negros, não é só com as mulheres, mas com todo mundo. Estou muito interessada nisso porque estamos sempre discutimos se o futuro é tech. Acredito que, na verdade, o presente é tech, porque o futuro, de que falamos o tempo inteiro, está sendo construído agora – e como estamos construindo este futuro? Como podemos construir um futuro em que caiba mais pessoas? Porque uma coisa que ficou muito contemplada nos diálogos propostos neste livro é que a tecnologia não é neutra – e ela, de fato, não o é. Assim, devemos olhar para este mundo e perceber que temos muita tecnologia, mas continuamos com inúmeros problemas sociais.
Por isso, queria muito que a tecnologia servisse também para resolver problemas sociais. E se este futuro é tech, gostaria que tivéssemos mais diversidade na produção de tecnologia.