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Ensinando Técnicas: Três (Re)Arranjos e Relinguagens
As palavras de quem, os arquivos de quem?
Meu trabalho com o Center for Arts, Design, and Social Research fornece um contexto importante para o meu pensamento e ação em relação às ideias de ensino e técnicas que discutirei aqui. Vou começar, então, compartilhando uma breve introdução ao que fazemos. O Center for Arts, Design, and Social Research é uma organização de pesquisa independente que apoia artistas, acadêmicos de ciências sociais e humanas, tecnólogos e cientistas a compartilharem conhecimento sobre as questões mais urgentes de nosso tempo. Essas questões são identificadas coletivamente, por meio de nossas conversas. Reunimo-nos em residências, oficinas, simpósios e outras convocatórias, sempre experimentando, sempre procurando encontrar novas formas de produzir conhecimento, e trabalhando para enquadrar as questões críticas que queremos responder através do nosso trabalho conjunto. Também oferecemos uma bolsa de um ano de duração que apoia artistas e acadêmicos de todo o mundo a seguirem seus projetos e prioridades, que são amplamente definidos em suas localidades e contextos específicos. Também estamos pensando e realizando neste trabalho o que o filósofo mexicano Enrique Dussel chamaria de “uma globalidade” para além da globalização (Dussel, 2002). Perguntamos: como é que podemos reformular nossos relacionamentos uns com os outros, em todo o planeta, para além das restrições dos mercados, instituições acadêmicas e mundo da arte? E também fora das limitações da ciência e das estruturas de financiamento que determinam as questões da ciência? Desse modo, o trabalho do Center for Arts, Design, and Social Research se conecta ao quadro de rearranjos e relinguagem que desejo abrir aqui.
O título de minhas observações é “ensinando técnicas” e, por “ensinando”, refiro-me ao educador e teórico brasileiro Paulo Freire e aos conceitos de alfabetização que ele introduziu e com o qual tantas pessoas têm trabalhado desde sua introdução, nos anos 1960. Estas são as ideias de pedagogias do oprimido e pedagogias da libertação. A questão crítica que emerge na prática da pedagogia freiriana é a necessidade da criação de vocabulários descolonizantes dentro do que poderia de outra forma se tornar imperativos colonizadores da alfabetização. A alfabetização em si é um componente dos imperativos de modernização e desenvolvimento dos séculos 20 e 21. Com a questão da alfabetização, então, somos confrontados com o problema sobre qual língua é ensinada e qual deve ser aprendida. Se devemo-nos tornar “alfabetizados”, isso significa que aprendemos as línguas e o vocabulário dos outros? Aprendemos a língua dos opressores ou aprendemos outra língua? Na produção dos vocabulários que vêm de nós, dos participantes reunidos em um círculo de aprendizagem, daqueles de nós aqui reunidos, e daqueles reunidos nos encontros do Center for Arts, Design and Social Research, há uma proposta de outro tipo de conhecimento, outro arquivo, outra genealogia do pensamento. Quero transpor essa questão, então, de outros arquivos, outras genealogias e outras linguagens de forma mais ampla para a tecnologia e a educação hoje.
Pensando a partir do trabalho do falecido Immanuel Wallerstein, o teórico dos sistemas mundiais, a diferença entre os anos 1960 e os dias de hoje é realmente mínima. Estamos nos estágios finais do sistema capitalista mundial e, como Wallerstein nos ensina, o próximo sistema pode ser melhor ou pior. Não há garantias. Os legados da colonialidade permanecem conosco. Os legados de modernização e desenvolvimento permanecem conosco. Agora continuamos, na longa continuidade do sistema capitalista mundial, no mesmíssimo momento, com a educação e a tecnologia posicionadas como alavancas para a modernização e o desenvolvimento do “Sul Global”.
Tanto a educação quanto a tecnologia são narradas hegemonicamente como alavancas da modernidade. Na ideologia da modernidade, que emerge com a colonialidade, o “desenvolvimento” humano é mensurado pelo uso da tecnologia. A sociedade capitalista é aperfeiçoada por suas ferramentas. A modernização e o desenvolvimento forneceram uma ideologia motriz para o trabalho de expansão territorial e imperialismo cultural por meio do estabelecimento, da manutenção e do crescimento dos sistemas de educação e tecnologia.1 Esses conceitos emprestam um caráter moral e missionário aos projetos de expansão transnacional do “Norte Global” nos países “subdesenvolvidos” do “Sul Global”. Esses projetos reforçam uma geopolítica do conhecimento que desvaloriza os conhecimentos, epistemes e heurísticas do Sul. Arturo Escobar chama isso de “regime escópico” do desenvolvimento: a gama de imagens do “Sul Global” retratando-o como vazio, um receptáculo pronto para seu encontro com infraestruturas de desenvolvimento, incluindo não apenas canais e represas, mas também transporte, produção energética e comunicação (Escobar, 2011).2 A Internet, uma rede militar transformada em infraestrutura para a troca de matéria digital, baseia-se em infraestruturas globais de desenvolvimento, como uma arquitetura de informação do comércio capitalista. No entanto, também passa a ser uma transportadora de múltiplos significados. Seus propósitos e a direção de seus fluxos são retrabalhados em seus múltiplos pontos de acesso, globalmente.
No momento atual, há muitas urgências que enquadram minha compreensão do estado do ensino e da técnica, e minha abordagem, então, para imaginá-los e mobilizá-los. Isso inclui o reconhecimento das formas existentes e emergentes de desigualdades sociais nas quais tanto a educação quanto a técnica estão situadas. Mais importante, esses são legados do colonialismo e das atividades do sistema-mundo capitalista moderno, em escalas local e global, mas, como também sabemos, estamos vivendo um momento renovado de fascismos nacionalistas, sustentando discursos de diferença e racionalizando uma miríade de formas de desigualdade e, pior, encarceramento em massa e genocídio. Podemos entender essas condições como longas sombras históricas, movimentos moleculares sociais e econômicos, subcorrentes e sobrecorrentes de poder que fluem através de dinheiro, governos e capital transnacional acima e abaixo do horizonte de visibilidade e do governável. E criando atrito entre essas diferentes escalas, macro e moleculares, do capitalismo transnacional, nacionalismos, racismos, machismos, queerfobias e heteronormatividade, estão a educação e a tecnologia. Como um fio condutor, a educação e a tecnologia têm sido vistas como alavancas para as pessoas passarem do subdesenvolvimento ao desenvolvimento. No entanto, tanto a educação quanto a tecnologia criam espaços que galvanizam imaginários e desejos apaixonados por igualdade de conhecimento e diversidade epistêmica. Como avançar com um compromisso renovado, nesses tempos, com uma ocupação apaixonada desses espaços pela libertação passada e futura de conhecimentos e potencial humano, além do homo-economicus, e a super-representação do “Homem”, conforme Sylvia Wynter escreveu (Wynter, 2000)? Onde traçamos o ponto de partida desta linha? Onde está nosso arquivo? Qual é a nossa genealogia? Podemos rearranjar a educação? Podemos fazer uma relinguagem das técnicas?
Três (re)arranjos ou relinguagens
1. Sociogenia
O pensamento pós-colonial e descolonial dos teóricos afro-caribenhos Sylvia Wynter e Edouard Glissant informa minha compreensão do papel da cultura visual humana e das práticas artísticas como críticas e transformadoras dentro dessas urgências do presente. Para Wynter, que entende as maneiras como o capitalismo global criou uma hierarquia de formas de conhecimento, bem como uma geopolítica do conhecimento, o termo “sociogenia” é fundamental, desenvolvido a partir da obra de Frantz Fanon. Wynter propõe a sociogenia como um conjunto de práticas visuais, culturais e artísticas que reconstroem modos de pensar e agir, incluindo a forma como entendemos nosso próprio corpo e suas possibilidades. Quando entendida no contexto de formas de dominação social e econômica, a ideia de sociogenia torna-se uma prática de reconstrução de corpos e comunidades para que possamos imaginar condições diferentes para eles. A sociogênese é a escrita de nossa existência. E, assim, nossa comunicação não é apenas uma ferramenta para desempenhar um papel no mundo capitalista, um papel frente ao capital, mas para construir nossas próprias relações sociais e futuros potenciais. Wynter pensa assim com, por exemplo, o cinema. Ela teoriza o cinema como, em primeiro lugar, emergindo das formas primevas de produção de imagens humanas nas cavernas; globalmente, onde os primeiros humanos fizeram isso. E como um espaço de coconstrução, isso também ecoa o movimento do Terceiro Cinema e a sensação de a tela ser uma interface. A tela não é para suturar ou dominar, é para abrir a possibilidade de criar novos sentidos de ser humano, juntos (Wynter, 2000).
Imagens das residências internacionais de pesquisa do Center for Arts, Design, and Social Research, 2017-2020; que aconteceram na Itália, no México, e no Quênia. Nas fotos: Fidencio Briceño Chel (ao lado, Mérida); e Otis Cunningham, Claudette Gacutti, Sonia Barrett, Susana Pilar Delahante Matienzo, Joseph Kamaru, e Bruno Moreschi (Nairóbi, à direita).
Fonte: arquivo CAD+SR
O grupo de pesquisa Affecting Technologies [Afetando Tecnologias] do CAD+SR, se encontrando em Helsinque, 2019, e Spoleto, 2018. Na foto: Bently Spang (esquerda) e Evelyn Eastmond (direita).
Fonte: arquivo CAD+SR
Simpósio e performances do grupo Queering Spaces [Queerificando Espaços] do CAD+SR em Londres (2018) e Mérida (2019).
Fonte: arquivo CAD+SR
Um exemplo de sociogenia como práxis é o trabalho do artista nativo americano Bently Spang, que realiza a (re)mediação de conhecimentos indígenas para que ele, membros de sua tribo e visitantes entendam a interseção de práticas culturais tradicionais históricas e saibam como elas sobrevivem na vida cotidiana e em formas de contar histórias. Além disso, o seu trabalho faz uma pergunta sobre os ecos desse projeto nos arquivos dos EUA, construídos sobre lógicas coloniais de dominação.
2. Técnicas para além do tempo
Se entendemos a tecnologia, com Bernard Stiegler, como formas de conhecer técnicas, com técnicas entendidas como a diversidade global de ferramentas humanas, então redescobrimos nossa capacidade de narrar as ferramentas de acordo com uma infinidade de especificidades temporais, culturais e geográficas. Em Technics and Time, Volume 1: The Fault of Epimetheus [Técnicas e o tempo, volume um: A culpa de Epimeteu] (1998), Stiegler discute técnicas não apenas como comunicação de informação, tecnologias digitais ou eletrônicas, mas como ferramentas; como todas as ferramentas humanas, incluindo a voz, o corpo e todos os instrumentos e formas de comunicação que os humanos produziram globalmente desde que chegamos ao planeta. Este sentido de “técnicas”, muito amplo, relativiza a ideia das TIC (Tecnologias de Informação e Comunicação) como a única ou a mais importante tecnologia. Também interroga o imperativo do arquivo digital no contexto da geopolítica do conhecimento. À medida que o arquivo digital começa a agregar mais valor, os arquivos não digitais são subestimados ou completamente desvalorizados. Esses arquivos, que podem ser falados, cantados, sentidos em nossos corpos, e que podem ser efêmeros, são considerados sem importância para o nosso desenvolvimento humano. Stiegler nos ajuda a pensar além desse vínculo de domínio geopolítico em direção a uma adoção de múltiplas técnicas que ocorrem globalmente, com diferentes formas e histórias. Com base no trabalho de Stiegler, Yuk Hui, por exemplo, em um trabalho recente, reposicionou a tecnologia na China, recontando tanto a tecnologia na China quanto a tecnologia em geral (Hui, 2019).
Como, então, poderíamos reposicionar nossas compreensões da tecnologia? Quais são as formas de indigeneidade, por exemplo, que queremos propor como relinguagem, recuperar e reposicionar como ponto de partida para nossos modos de conhecer e para as ferramentas que usamos? Como essas re-situações recontam ou situam/historicizam diferentemente tecnologias digitais?
3. Lugares comuns e emaranhados
O título contínuo da residência anual de pesquisa do Center for Arts, Design, and Social Research é “Lugares comuns e emaranhados”, uma frase do pensador e poeta Édouard Glissant (1997). A sugestão é de que estamos inevitavelmente emaranhados em um arquipélago de fluxos culturais globais, estruturados em grande parte por legados do comércio de escravos e da colonialidade, e nosso desafio é encontrar nossos lugares comuns e estar atentos aos nossos emaranhados, sem reduzir sua complexidade e a fricção que eles inevitavelmente causam, a fim de reconstruir e coconstruir nossa humanidade. Na continuidade deste trabalho, nosso mais recente encontro em Nairóbi, em colaboração com a artista-pesquisadora Syowia Kyambi, foi organizado sob o título De/Archive East Africa [Des/Arquivo África Leste]. Nossas conversas lá centraram-se em um compromisso abrangente com a ruptura do arquivo colonial por meio de um envolvimento deliberado com o mesmo, envolvimento que busca criar um fantasma no arquivo e interromper sua solidez e autoridade central.
Conectando teoria crítica de raça e estudos étnicos, teoria social, teoria feminista transnacional e de mulheres de cor e teoria de cinema, a ênfase de minha pesquisa em andamento está nos espaços culturais, tecnológicos e políticos que a mídia digital aciona através destes momentos e espaços, criando possibilidades de reconstruir a nós mesmos e nossas relações, incluindo identidades, comunidades globais e futuros sociais. Pergunto, por exemplo: como podemos pensar de maneira diferente, redirecionar os caminhos, lares e comunidades da geopolítica do conhecimento e das memórias? Nossos conhecimentos e memórias podem estar no arquivo “oficial” (o primeiro cinema) ou não. Conhecimento e memórias no “arquivo oficial” podem ser extraídos, podemos conversar com eles, ouvindo e lendo nas entrelinhas destas memórias arquivadas, para dar a estas novas vidas, tempos e espaços. Também podemos entender como os arquivos “oficiais” podem tornar ausentes categorias inteiras de conhecimento e memória. Também podemos imaginar e criar novos espaços para o arquivamento do conhecimento e da memória. Também podemos localizar, curar e materializar memórias que estão além do alcance dos arquivos existentes, e imaginar e criar novas casas, comunidades e rotas de viagem para essas memórias (construir, ou redirecionar, um terceiro cinema).
A linha de mudança, imaginária e material, entre o possível e o impossível, é exatamente onde eu localizaria minha pedagogia. O engajamento pedagógico – como uma disposição permanente – emerge da minha compreensão dos cinemas digitais e das tecnologias de comunicação e informação como espaços que carregam a promessa de uma poderosa articulação da imaginação e da agência, formada em tensão com as construções e limitações de gênero, raça, história e geopolíticas e identidades nacionais. Esse entendimento informa, portanto, meu profundo compromisso com a possibilidade radical da educação e da tecnologia para a transformação individual e social, com o rearranjo e a relinguagem oferecidos pelos conceitos de sociogenia, técnicas, lugares comuns e emaranhados, e o des-arquivo.
1 Armand Mattelart escreve: “O ideal de ocidentalização representava todas as qualidades características de uma ‘atitude moderna’ e ‘gostos cosmopolitas’. Os índices de modernização foram calculados em termos de alfabetização, industrialização, urbanização e exposição à mídia… A UNESCO se apressou em traduzir os textos básicos dessa sociologia instrumental em várias línguas, enquanto sua equipe estabeleceu catálogos de padrões mínimos: para se livrar do subdesenvolvimento, para ‘decolar’, um país precisava ter dez exemplares de jornais, cinco pontos de internet sem fio, dois televisores e duas poltronas de cinema para cada cem habitantes. Como veículos do comportamento moderno, a mídia era vista como um agente-chave de inovação. Como mensageiros da ‘revolução das expectativas crescentes’, eles propagaram os modelos de consumo e de aspirações simbolizados pelas sociedades que já haviam atingido o estado mais elevado da evolução” (Mattelart, 2000, pp. 55-56, tradução nossa).
2 Ver Arturo Escobar, Encountering Development: The Making and Unmaking of the Third World. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1995.
REFERÊNCIAS
ESCOBAR, Arturo. Encountering development: The making and unmaking of the Third World. Vol. 1. Princeton University Press, 2011.
GLISSANT, Édouard. Poetics of relation. University of Michigan Press, 1997.
HUI, Yuk. The question concerning technology in China: An essay in Cosmotechnics. Vol. 3. MIT Press, 2019.
MATTELART, Armand. Networking the World, 1794 – 2000. Trans. Liz Carey-Libbrecht and James A. Cohen. Minneapolis, MN: University of Minnesota Press, 2000.
STIEGLER, Bernard. Technics and time: The fault of Epimetheus. Vol. 1. Stanford University Press, 1998.
WYNTER, Sylvia. “Africa, the West and the Analogy of Culture: The Cinematic Text after Man.” In Symbolic Narratives/African Cinema: Audiences, Theory and the Moving Image, pp. 25 – 76, Ed. June Givanni. London: British Film Institute, 2000.