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Calendário de imagens dissidentes: uma memória gráfica da política brasileira no Instagram
Apresentarei a vocês o projeto Calendário dissidente, um website que representa o resultado parcial do meu doutorado, em andamento no curso de Pós-graduação de Design da USP. O projeto, orientado pela professora Giselle Beiguelman, é um trabalho interdisciplinar que está sendo realizado durante minha residência no GAIA (Grupo de Artes e Inteligência Artificial), no Inova-USP. Conta também com a incrível parceria dos cientistas de dados Vinícius Akira Imaizumi, Gustavo Poletti (Poli-USP) e Gustavo Braga (Insper), orientandos do professor Fabio Gagliardi Guzman, grande incentivador deste trabalho em rede. E do programador independente Marcelo Villela Gusmão, responsável pelo front end do site.
O Calendário dissidente é um projeto que discute a memória gráfica dos principais acontecimentos sociopolíticos do Brasil desde a posse do presidente Bolsonaro, em 1 de janeiro de 2019. A discussão é feita pelo mapeamento estético das imagens no banco de dados do Instagram. É um trabalho curatorial e crítico que investiga novas estéticas das imagens produzidas para serem veiculadas nas redes. Da forma com que essas imagens, hoje, são produzidas, mediadas e veiculadas, toda essa produção estética corre o risco de ser perder no fluxo midiático. São cards (imagens-mensagens) criados no calor dos acontecimentos políticos não só por designers e artistas, mas por cidadãos engajados em várias causas ativistas.
O volume de imagens produzidas durante o primeiro e o segundo turnos das eleições presidenciais em 2018 foi surpreendente, e as redes sociais, de fato, representaram um potente veículo ativista, diretamente relacionado às manifestações que aconteciam nas ruas. Para arquivar e analisar esse novo vocabulário estético, utilizamos inteligência artificial e aprendizado de máquina como ferramentas essenciais para classificar essa produção de dados. As inteligências artificiais permitiram que eu trabalhasse com uma amostra muito maior de imagens, conseguindo ampliar o vocabulário estético a ser analisado, à medida que tive acesso a imagens que jamais seriam visualizadas se eu estivesse trabalhando dentro do meu feed, olhando apenas as imagens que o algoritmo do Instagram estava “direcionando” para mim.
Um dos principais diferenciais do site Calendário dissidente é que ele organiza essa produção heterogênea, produzida coletivamente, em uma narrativa visual cronológica, análoga aos principais acontecimentos políticos do país. As hashtags estabelecidas como filtro de busca foram consideradas as mais representativas das dissidências e das manifestações coletivas e poéticas de todos nós, pela lente do design de narrativas visuais. Selecionamos as seguintes hashtags: #desenhospelademocracia, #designativista, #coleraalegria e #mariellepresente.
Home page do site Calendario dissidente.
Cabe comentar que a criação da hashtag #mariellepresente antecede às eleições e foi efetuada após o assassinato da vereadora Marielle Franco1, em março de 2018. Porém, mantivemos a visualização de dados dessa hashtag porque ela está relacionada a várias demandas políticas e sociais – no que diz respeito a direitos LGBTQ, às pautas em favor do protagonismo feminino e contra o racismo. Esses dados enriquecem o viés crítico da pesquisa, agregando uma camada de cunho social à análise dessas narrativas.
#mariellepresente
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Antes de entrar nos aspectos tecnológicos e funcionais do projeto Calendário dissidente, abro um parêntese para apontar outras estratégias artísticas e curatoriais, mais filosóficas. Gostaria de citar dois pensadores-chave que investigam a imagem contemporânea, o Didi-Huberman e o Rancière. Em Levantes, texto e exposição homônima de Didi-Huberman, ele nomeia as imagens dissidentes como “imagens-desejos”, um termo muito poético que reflete essa vontade participativa dos cidadãos de produzir e veicular imagens: “São imagens-desejos, capazes de servir como modelos para a travessia de fronteiras” (Didi-Huberman, 2018, p. 7). Este conceito de “imagem-desejo” nos ajuda a responder o porquê afinal de essas imagens nos tocarem e nos deslocarem a pensar na fragilidade das batalhas dissidentes e na força da arte como instrumento e como voz de novas mensagens. Já Rancière, no célebre A partilha do sensível: Estética e política, afirma que “a revolução estética é, antes de tudo, a glória de qualquer um”. O que nos remete ao novo regime das artes e das imagens digitais produzidas por artistas anônimos, os usuários das redes.
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A análise dessas imagens e a problematização de seu arquivamento passam por processos de análise qualitativa e quantitativa. Primeiramente fizemos uma seleção criteriosa de sets de imagens para o treinamento das máquinas a partir de critérios estéticos. Neste processo, eu fui uma turker; contratei-me para selecionar 6 mil imagens relacionadas às seis categorias estéticas previamente definidas para a rotulagem. A partir da sintaxe visual, do formato e da linguagem visual dessas imagens, estabeleci sete parâmetros estéticos para classificá-las nas seguintes categorias: Factual; Memes, que é uma subcategoria do Factual; Ilustração digital; Ilustração manual, Tipografia digital; Vernacular e Apropriação. Os rotuladores foram desenvolvidos pela equipe do Inova-USP. E consideramos este um trabalho inédito, pois não usamos nenhum classificador que já está no mercado, nenhum modelo Python de prateleira. Esses classificadores não têm um viés comercial ou de segurança, de vigilância.
Imagens usadas para treinamento de máquina, classificadas nas categorias Factual; Memes, que é uma subcategoria do Factual; Ilustração digital; Ilustração manual, Tipografia digital; Vernacular e Apropriação.
Passemos então para a apresentação das páginas e das possibilidades de navegação do site: o calendário é streaming, o sistema rastreia as seis principais imagens do dia referentes às quatro hashtags.
O sistema é atualizado quatro vezes diariamente, de modo que a visualização do calendário do dia sofre alterações conforme o volume de postagens sob a mesma hashtag. São publicadas as imagens mais curtidas e as mais compartilhadas. E criamos uma IA para identificar as imagens repetidas.
Na parte superior da home publicamos as imagens mais curtidas e/ou compartilhadas do dia.
O usuário também pode navegar por meio de buscas temáticas. O sistema captura as legendas originais das imagens do Instagram e indexa os principais temas. Criamos um banco de dados de palavras-chave a fim de cobrir o maior número de temas possíveis. Rastreamos mil palavras mais significativas em todas as legendas e criamos um código para esta função. A partir dessas mil palavras, selecionamos os 55 filtros (tags):
amazonia, aquecimento global, arte, bolsonaro, brasil, brazilresists, brumadinho, caixa2dobolsonaro, cirogomes, crime ambiental, cultura, democracia, desastre ambiental, dilma, direitoshumanos, ditaduranuncamais, diversidade, doria, educação, educaçãoinclusiva, eleicoes2018, eleições2018, elenunca, esquerda, facistas, feminismo, foratemer, fumaça, golpista, grevegeral, haddad, história, homofobia, impeachmentbolsonaro, indígenas, justiça, lgbt, lgbtq, liberdade, lula, lulalivre, machismo, mariellevive, meio ambiente, mexeucomumamexeucomtodas, mineração, moro, movimentonegro, mulherescontrabolsonaro, mulheresnapolitica, mulheresunidaspelademocracia, negra, ninguemsoltaamãodeninguem, oleo, petroleo, praia contaminada, previdência, queimadas, quemmatoumarielle, racismo, redeglobo, reforma trabalhista, resistencia, sociedade, tsunamidaeducação, vazajato, vidasnegrasimportam.
Todas as imagens publicadas estão creditadas a partir do nome do usuário que a publicou no Instagram (sendo possível acessar a página do autor). Como várias imagens são viralizadas e repetidas, adotou-se o critério de creditar a primeira publicação referente àquela imagem. Ao clicar em uma imagem-destaque, você tem acesso ao autor da imagem.
Por exemplo, na Figura 5 vê-se uma arte do designer e ilustrador Cris Vector retratando a ativista ambiental ugandense Vanessa Nakate. Ela participou de um encontro internacional com Greta Thunberg e outros ativistas, mas foi cortada da foto oficial do evento. Designer ativista, Vector quis dar visibilidade a este fato, adicionando à imagem de Nakate a palavra “heshima”, da língua suaíli, que quer dizer “respeito” e também “dignidade”. (Suaíli é uma das línguas oficiais de Uganda.)
A ativista ambiental (e negra) ugandense Vanessa Nakate sofreu discriminação em evento internacional e foi retratada por Cris Vector. Na imagem, o designer incluiu a palavra “heshima”, uma palavra da língua suaíli, que quer dizer “respeito” e também “dignidade”.
Navegando e fazendo buscas a partir das palavras-chave, temos acesso a outras imagens tagueadas com as palavras “negro”, “racismo”, “marielle presente” e “vidas negras importam”. Neste caso, as palavras-chave foram inseridas pelo autor do post e nem todas as imagens relacionadas ao racismo apresentarão este tagueamento, o que é lamentável, pois, do contrário, a amostragem seria mais ampla. Outra funcionalidade do site que merece destaque: o usuário tem sempre o link da origem da postagem, levando-o a conhecer autores e ilustradores, outras pessoas que estão produzindo essas imagens dissidentes.
Fase dois
A segunda fase do projeto, que ainda não está no ar, vai apresentar a curadoria de imagens assistidas por inteligência artificial. São as narrativas visuais editadas pelos seis rotuladores de imagem. O site publicará algumas galerias de imagens factuais, de ilustração digital, tipografia digital, ilustração manual, tipografia vernacular e apropriação.
Outro aspecto interessante para a discussão das imagens dissidentes neste projeto é a questão da linguagem visual: o que é global e o que é local? Outra questão que gostaria de explorar é o uso dos nossos classificadores – treinados para analisar a imageria dissidente brasileira – com outras hashtags internacionais. Seria interessante averiguar quais características visuais e estilísticas são comuns aos posts no Chile, na Argentina, no Uruguai, nos EUA, etc. Existe uma estética dissidente comum às imagens ativistas na América Latina? Nos EUA? No Norte Global? Na Europa?
Na Figura 3, com as imagens apropriadas, vemos o icônico cartaz Hope da campanha de Obama, desenhado por Shepard Fairey, apropriado com a frase “Yes we can” e reapropriado com imagens de Bolsonaro com os dizeres “Ele não” e de Marielle. Em outro exemplo, o icônico trabalho serigráfico de Andy Warhol com o rosto de Marilyn Monroe é reapropriado com a imagem de Marielle.
É um desafio muito grande fazer um set de treinamento de máquinas para rotular as imagens apropriadas, mais ainda temos isso em mente. Afinal, a apropriação cultural é uma das principais características da linguagem remixada das redes sociais, da cultura visual digital. E a ideia é trazer isso para o site pensando no foco do design.
Para finalizar, apresento uma imagem gerada pelos robôs. Ela ilustra a visualização das imagens rotuladas pelas inteligências artificiais. Trabalhar com IA significa lidar com muitos números, parâmetros e gráficos, e venho do campo das artes visuais e do design. Então, visualizar o erro era muito importante para o entendimento de todo o processo maquínico: e por que a inteligência artificial erra? Onde e por quê? E graças ao trabalho multidisciplinar com o Gustavo Poletti, conseguimos aplicar o modelo MMD Critic, desenvolvido pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts, pela equipe de Been Kim (2016). O modelo foi customizado para rodar com nossos rotuladores e apontar os detalhes críticos da classificação.
A visualização das imagens rotuladas pelo modelo MMD Critic.
Para vocês terem uma ideia, a visualização é superboa, de 120 dpi. E conseguimos identificar algumas imagens de ilustração digital, as factuais, e de ilustrações manuais. Já as imagens vernaculares, com caligrafia e escritas manuais, que exigem um repertório cultural ou intelectual, não são reconhecidas e interpretadas pelo robô. A partir da visualização da precisão, começamos a estudar os 13% de erro. E assim buscamos soluções para melhorar a precisão dos nossos classificadores. Os classificadores tendem a errar quando a linguagem é muito remixada, composta por múltiplas linguagens. Se nós, treinadores dessas máquinas, ficamos na dúvida na hora de classificar os sets das imagens, hesitando em colocá-las em determinada categoria, imaginem um robô?
Considerações finais
Tenho uma grande inquietação sobre a subjetividade da interpretação da inteligência artificial pelas máquinas. Será que podemos falar da subjetividade da máquina a partir das imagens compostas e interpretadas pelas visões computacionais? Eu acredito que sim.
É fundamental destacar como a subjetividade está presente nos acertos interpretativos da máquina treinada para este projeto. Ela foi treinada e manipulada como uma extensão classificatória altamente escalada e capacitada para reconhecer, selecionar e categorizar vários tipos de imagens, em grandes quantidades, e em segundos. Os dados inferidos como referência visual já passaram por uma interpretação prévia, foram revisados para servir como os parâmetros estéticos de determinado conjunto de imagens. Essa etapa é crucial e nesse estágio reside toda a responsabilidade e o poder humano em manipular os dados para um fim determinado.
Nesse sentido, tratar de classificadores de imagens construídos a partir de parâmetros estéticos coloca-nos em uma situação muito peculiar, onde a estratégia curatorial apreende novas informações relacionadas às imagens analisadas, a partir dos acertos e dos erros dos modelos neurais. Os modelos passam, assim, a ser parceiros na tarefa de visualizar e analisar as linguagens dos posts das redes. E a visualização dessa linguagem, reconfigurada e “re-representada” nos leva a outras descobertas e indagações.
Ao navegar pelos meses do calendário, temos uma boa leitura, por meio de imagens, de um mosaico de linguagens visuais – ilustrações manuais, imagens documentais apropriadas da grande mídia, ilustrações vetoriais digitais e colagens com linguagens remixadas. Lemos os acontecimentos sociopolíticos por meio de outro léxico de linguagem. As imagens produzidas e compartilhadas por muitos formam uma narrativa heterogênea em termos de linguagem visual, mas uníssona em termos de mensagem. Um jogo de linguagem, participação coletiva, adição, apropriação, trocas afetivas, posições políticas, ativismos relacionados a muitos temas, alguns locais, outros locais. Há uma contaminação de um sentido comum, de que algo nos afeta e é preciso participar dessa corrente, produzindo imagens, integrando esse jogo de linguagem, de se comunicar e se expressar por imagens.
Cabe a nós, pesquisadores, designers e artistas, usarmos de forma ética as ferramentas de aprendizagem de máquina para classificar imagens. Então, volto a dizer que a nossa atenção está voltada à criação de modelos de visão computacional, a partir de uma metodologia crítica e estética para um trabalho no campo da cultura visual digital no qual o Calendário dissidente se insere. Esperamos que essa metodologia possa contribuir para outros trabalhos no campo do design, das artes visuais, das humanidades e da ciência de dados.
1 Editor’s note: Marielle Franco was a politician and human rights activist who was brutally assassinated in the city of Rio de Janeiro on March 14, 2018. Although the police investigations have not concluded, she may have been targeted for her outspoken critique of the militias in Rio, police brutality, and other human right abuses.
REFERÊNCIAS
BEIGUELMAN, Giselle. Memória da Amnésia: Políticas do Esquecimento. São Paulo: Edições Sesc, 2019.
CRAWFORD, K.; Paglen, T. Excavating AI: The Politics of Training Sets for Machine Learning. Disponível em: <https://excavating.ai>. Acesso em janeiro 2020.
DIDI-HUBERMAN, Georges. (Org.). Levantes. São Paulo: Edições Sesc, 2017.
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KRIZHEVSKY, Alex Ilya et al. ImageNet classification with deep convolutional neural networks. In Proceedings of the 25th International Conference on Neural Information Processing Systems – Vol. 1, 2012.
MANOVICH, Lev. AI Aesthetics. (2018). Moscou: Strelka Press, 2019
NAVAS, Eduardo. Regenerative Culture. In: Norient Academic Online Journal. Disponível em: https://norient.com/academic/regenerative-culture-part-15/. Acesso em abril 2020.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: Estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005.