EN PT/BR
O que circula sobre trabalho digital, IA e futuro do trabalho
Em fevereiro, foi publicado no UOL Tab a reportagem “Pago por um clique”, em que Bruno Moreschi e eu fomos entrevistados sobre as plataformas de microtrabalho e o trabalho de treinadores de dados para inteligência artificial (IA). Um dos comentários no post da jornalista e autora da reportagem, Jaqueline Lafloufa, dizia o seguinte: “A narrativa da esquerda é contraprodutiva”. Isso me fez pensar: o que seria contraprodutivo? E o que seria produtivo? Também me ajudou a compreender o quanto a linguagem é um elemento e um capital para essas lógicas e lutas de produção e contraprodução.
Disrupção. Atitude de dono. Transformação digital. Ecossistemas de inovação. Somos ombardeados a todo momento por uma gramática que é, ao mesmo tempo, do capital e do Vale do Silício – já que a plataformização da sociedade não é descolada do processo de financeirização. O quanto somos bombardeados por expressões que podemos chamar de gramáticas de coach ou do LinkedIn? Isso domina também as agendas acadêmicas. O que significa transformação digital e ela serve para quem? O que é exatamente um ecossistema de inovação? A quem serve? Quais suas implicações sociais, políticas e econômicas? O que isso implica para os trabalhadores?
A verdadeira “disrupção” é o trabalho fantasma de pessoas que alimentam IAs, como os brasileiros na Amazon Mechanical Turk ou na Spare 5, esta última com a maioria dos trabalhadores sendo venezuelanos. É essa crescente taskificação do trabalho que faz o sistema financeirizado e plataformizado funcionar. A partir disso, mais questões: o quanto iremos conseguir reapropriar essas linguagens para outras finalidades? O quanto devemos lutar por elas? Como pensamos em novas gramáticas? Nessas lutas por circulação de palavras, precisamos reapropriar as linguagens já existentes e investi-las de novos sentidos, assim como também precisamos criar novas linguagens – esse é o nosso desafio. Como essas linguagens se relacionam a práticas materiais e a discursos? Essa é uma questão que envolve a própria agenda acadêmica. Textos como a reportagem do The Intercept “The Invention of ‘Ethical AI’: How Big Tech Manipulates Academia to Avoid Regulation”, escrita por um dos integrantes do nosso grupo, o Rodrigo Ochigame, ajudam a compreender a cooperação entre as empresas do Vale do Silício e a universidade. Como ultrapassar
essas questões? O quanto conseguimos reapropriar coisas que eram aparentemente revolucionárias, como as Fab Labs e a cultura maker, para outras posições e outras territorialidades?
Estudo a questão do trabalho digital e do trabalho em plataformas e trago a contribuição básica do filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto. Foi professor do Paulo Freire e, apesar de desconhecido no
próprio país, tem muitas contribuições para nos ajudar a pensar sobre tecnologia de maneira mais efetiva do que muitos autores do Norte Global. Em O conceito de tecnologia (Pinto, 2007) aponta que não é possível separar a tecnologia dos processos produtivos e nem da questão do trabalho humano em uma sociedade como a brasileira. O autor também nos ajuda a refletir sobre o lugar da tecnologia em um país como o nosso. Na questão do trabalho digital, por exemplo, temos a questão geopolítica muito fortemente destacada – as plataformas são majoritariamente do Norte Global, com uma força de trabalho maciça do Sul Global.
É o caso dos já citados trabalhadores brasileiros na Amazon Mechanical Turk e dos treinadores venezuelanos de carros autônomos da Spare 5. Enquanto a força de trabalho está na América Latina, as plataformas são mantidas a partir do Norte Global. Gig economy no exterior não é a mesma coisa que gig economy na América Latina. Aqui, o bico, o gig, sempre foi a norma e não é visto como temporário, mas sim como permanente. Por isso, como podemos pensar a tecnologia em um país em que esse modo de trabalho foi sempre norma, a prática permanente?
Atualmente, realizo uma pesquisa com Willian Fernandes Araújo (Universidade de Santa Cruz do Sul) sobre os discursos dos trabalhadores de plataformas de microtrabalho, como parte do livro em
produção AI for Everyone? [IA para todos?], da Universidade de Westminster, na Inglaterra. É muito interessante como estes trabalhadores descrevem o que fazem. Em suas contas de LinkedIn, declaram-se quase orgulhosos de fazer parte desse mundo da inteligência artificial. Uma das trabalhadoras escreve: “Nossa, ganhava muito dinheiro na Spare5 quando ela estava no Brasil. Agora que não atua mais no país, não consigo mais dinheiro de plataformas”. Outro
trabalhador: “Ah, quando me perguntam, falo que estou ajudando a inteligência artificial e é um trabalho superssecreto”. Como se dá esse processo de reapropriações a partir desses trabalhadores? E mais uma provocação: como podemos pensar a tecnologia a partir do ponto de vista brasileiro sem desconsiderar as especificidades ou as questões geopolíticas? Estas são perguntas que podem nos ajudar a entender melhor esse trânsito entre o que é global e o que é local.
Como imaginar outros mundos possíveis? Em Capitalist Realism: Is There No Alternative? [Realismo capitalista: Não há alternativa?] (Fisher, 2009), o autor afirma que é mais fácil imaginarmos o fim do mundo do que o fim do capitalismo. A programadora norte-americana Wendy Liu, em seu livro Abolish Silicon Valley: How to Liberate Technology from Capitalism [Abolir o Vale do Silício: Como liberar a tecnologia do capitalismo] (Liu, 2020), complementa nesta direção,
ao se perguntar sobre como podemos abolir as lógicas – produtivas, linguísticas, financeiras – a partir dos quais o Vale do Silício foi construído; e, ainda, sobre como nos reapropriamos das tecnologias pensando em outros mundos possíveis. Isso me faz lembrar também de pesquisa do professor Christian Fuchs, da Universidade de Westminster, que mostra que 70% das pessoas do Reino Unido querem plataformas alternativas que funcionem a partir de outras lógicas. É algo
muito além da discussão sobre o futuro do trabalho e da tecnologia feita pelos futuristas que se vendem como coaches – eles caracterizam o futuro ou como o máximo da felicidade ou como algo tenebroso. Precisamos construir o futuro do trabalho para nós, considerando as desigualdades e intersecções de gênero, raça e classe no Brasil.
Quando pesquisadores como Nick Dyer-Witheford, Atle Mikkola Kjøsen e James Steinhoff decretam que a inteligência artificial é a condição geral de produção hoje, precisamos pensar a partir das especificidades da nossa sociedade. Já há articulações e conexões entre trabalhadores de aplicativos que vivem em São Paulo, Santiago, Cidade do Cabo e Londres. Vivemos em uma circulação das lutas
dos trabalhadores ao redor do mundo. O que precisamos é pensar mais em modos de articulação local-global.
O livro Inventar el futuro: Postcapitalismo y un mundo sin trabajo [Inventando o futuro: Pós-capitalismo e um mundo sem trabalho] (Srnicek, 2017) lança mais questões: como retomamos essa noção de futuro? Como nos apropriamos dessa noção de futuro e do que chamo de “projetos prefigurativos”? Como imaginamos, hoje, a sociedade que queremos amanhã? Srnicek escreve que é preciso recuperar o significado e o sentido de futuro, do queremos em relação a ele.
A partir disso, venho pensando na ideia de “cooperativismo de plataforma”, com seu potencial de construir outra plataformização do trabalho, de maneira justa – junto com as organizações de trabalhadores de plataforma –, como, por exemplo, o sindicato de trabalhadores de videogame, com presença em doze países, incluindo Argentina e Brasil. Também destaco uma reunião em janeiro de 2019 em que motoristas de aplicativo de 23 países discutiram suas demandas. Como unir o potencial tecnológico com lógicas de organização do trabalho ligadas à autogestão e à horizontalidade? Como incorporar essas lutas e políticas prefigurativas em um mundo em que o velho já morreu e o novo ainda não pode nascer, como diz Fraser (2020) parafraseando Gramsci?
Tudo isso é um desafio. Cooperativismo de plataforma tem o potencial de circular significados e mercadorias com o objetivo de reinventar os circuitos de produção e consumo localmente. Mas venho pensando nessas potencialidades do cooperativismo na área da comunicação. Um dos exemplos é a Means TV, uma plataforma de streaming anticapitalista dos Estados Unidos que funciona na lógica de uma cooperativa de profissionais de audiovisual distribuindo conteúdo anticapitalista, fazendo circular as lutas dos trabalhadores – eles são os mesmos que fizeram a bem-sucedida campanha da congressista norte-americana Alexandria Ocasio-Cortez. É claro que movimentos como esse não estão livres de contradições. Ao mesmo tempo que apresenta potenciais prefigurativos, o Consórcio de Cooperativismo de Plataforma já foi financiado pelo Google.org, uma fundação de uma grande empresa de tecnologia. Isso também ocorre com o jornal argentino cooperativo Tiempo Argentino, um caso clássico de fábrica recuperada pelos trabalhadores na área de jornalismo, que recentemente ganhou um edital financiado pelo Google News Initiative. Essas são contradições nesse processo. Contudo, contradições jamais são resolvidas. Precisamos encará-las para reimaginar utopias reais.
Como enfrentamos essas contradições? Questões como esta e tantas outras apresentadas aqui podem nos ajudar a pensarmos em um trabalho digital que imagina o futuro de maneira também radical e prefigurativa. Ser radical, neste cenário, é enfrentar as contradições. E não esquecê-las. Em uma racionalidade neoliberal que se parece tão totalizante quanto os monstros da série Stranger Things, é preciso expor e enfrentar as contradições para podermos pensar em outras circulações de sentidos para tecnologias e para o mundo do trabalho. Como diz Harvey (2017), as contradições teimam em não se resolver. Elas apenas se deslocam.
REFERÊNCIAS
DYER-WITHEFORD, Nick., Kjosen, Atle. & Steinhoff, James. Inhuman Power: Artificial Intelligence and the Future of Capitalism. London: Pluto Press, 2019.
ENGLERT, Sai; Woodcock, Jamie; Cant, Callum. Operaísmo Digital: Tecnologia, plataformas e circulação das lutas dos trabalhadores. Revista Fronteiras – Estudos Midiáticos. v. 22, n. 1, 2020, pp. 47-58.
FISHER, Mark. Realism Capitalism: Is There No Alternative? Londres: John Hunt Publishing, 2009.
FRASER, Nancy. O velho está morrendo e o novo não pode nascer. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.
GROHMANN, Rafael & Araújo, Willian. Deepen than ‘artificial artificial intelligence’: The work of Brazilian on global AI platforms. In: Verdegem, Pieter (ed). AI for Everyone? Critical Perspectives. London: University of Westminster Press, no prelo.
GROHMANN, Rafael & Qiu, Jack. Contextualizing platform labor. Contracampo, 39 (1), 2020.
HARVEY, David. 17 contradições e o fim do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2017.
LAFLOUFA, Jacqueline. Pago por um clique. UOL, 2020. Disponível em: <https://tab.uol.com.br/edicao/servidao-digital/>. Acesso em: 11, jun. 2020.
MORESCHI, Bruno, Pereira, Gabriel. & Cozman, Fabio. The Brazilian workers in Amazon Mechanical Turk: Dreams and realities of ghost workers. Contracampo, 39 (1), 2020.
LIU, Wendy. Abolish Silicon Valley: How to Liberate Technology from Capitalism. Londres: Repeater, 2020.
OCHIGAME, Rodrigo. The invention of “Ethical AI”: How big tech manipulates academia to avoid regulation. The Intercept, 2019. Disponível em: <https://theintercept.com/2019/12/20/mit-ethical-ai-artificial-intelligence/>. Acesso em: 11, jun. 2020.
PINTO, Álvaro Vieira. O conceito de tecnologia, volume 1 e volume 2. Rio de Janeiro: Contraponto, 2007.
SRNICEK, Nick. Inventar el futuro: Postcapitalismo y un mundo sin trabajo. Barcelona: Malpaso, 2017.